A distribuição para o público de uma substância divulgada nas redes sociais como poderoso medicamento contra o câncer, sem jamais ter sido testada em humanos, é considerada irresponsável pelos cientistas da área da saúde. Uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou a paciente Alcilena Cincinatus, de 68 anos, a obter cápsulas de fosfoetanolamina, droga cujo potencial para combater células cancerosas vem sendo pesquisado na Universidade de São Paulo (USP).
A liminar, assinada pelo ministro Edson Fachin, levou o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) a determinar que a USP distribuísse a substância a centenas de pessoas que vinham movendo ações para ter acesso à droga. Desde terça-feira, filas se formam na porta do Instituto de Química da USP, onde o estudo é conduzido. Milhares de pessoas compartilham informações sobre as cápsulas na internet, mas a própria universidade divulgou um comunicado esclarecendo que a fosfoetanolamina não é remédio e que suas eventuais propriedades anticancerígenas não foram comprovadas.
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— Se minha mãe não estivesse nessa situação eu não apelaria para este tratamento. Nosso médico explicou que não há comprovação, mas nos deixou à vontade para usar (a droga) — conta o advogado Dennis Cincinatus, que conseguiu a liminar no STF na quinta-feira da semana passada. — Não imaginava que iria criar um alarde. Acho que cada um deve consultar o seu médico.
A mãe do advogado tem câncer no pâncreas e no fígado e está em estágio terminal. Para Cincinatus, que também perdeu o pai para a doença há cinco anos, a fosfoetanolamina é “a última chance”.
— Vi diversas imagens de regressão de tumores. Ninguém falou de efeitos colaterais — conta o advogado. — A indústria farmacêutica não divulga isso porque os tratamentos existentes são caros. Minha mãe gasta R$ 15 mil por mês, mas tem plano médico.
Especialistas da área da saúde, no entanto, criticam as decisões judiciais.
— Quem autorizou isso é um irresponsável. Não se pode liberar uma sustância sem comprovação de eficácia, não há segurança para os pacientes — critica o especialista Volnei Garrafa, membro do Comitê Internacional de Bioética da Unesco e coordenador do programa de pós-graduação de Bioética da Universidade de Brasília.
DECISÃO PODE SER REVISTA
Ontem, o ministro Fachin explicou que concedeu a liminar porque as informações repassadas a ele deixaram claro que a decisão era fundamental para garantir a saúde da paciente. E afirmou que o uso do medicamento não implica em prejuízo à ordem pública, mas admitiu que pode rever a decisão.
— Os elementos indicaram que estavam presentes os pressupostos para a concessão da medida cautelar — declarou o ministro, que explicou que a defesa da paciente entrou com uma petição, mas o instrumento jurídico ideal era um recurso extraordinário. Por isso, deu prazo de dez dias para a defesa entrar com o procedimento correto, quando poderá reformar sua decisão, se considerar conveniente.
O presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, Evanius Wiermann, chama a atenção para a falta de informações sobre efeitos colaterais, interações medicamentosas e do perigo de os pacientes abandonarem seus tratamentos convencionais. Ele diz que não bastam os testes em animais de laboratório: é preciso avançar à fase clínica, em que os testes acontecem em humanos, inclusive com a comparação com o placebo, com os medicamentos padrões e de doses diversas. De mil substâncias promissoras, segundo ele, apenas uma vinga.
— Toda droga tem de passar pelos procedimentos de registro. Existem protocolos para isso, inclusive de dosagem — alerta o oncologista. — Entendo o desespero, mas é preciso cautela. As pessoas já acreditaram que a babosa e o cogumelo-do-sol ajudavam no tratamento do câncer.
O oncologista Carlos Gil conheceu a fosfoetanolamina há três anos, quando era coordenador da Rede Nacional de Fármacos Anticâncer, um programa do Ministério da Saúde voltado à avaliação de compostos químicos para o desenvolvimento de anticancerígenos. A substância não foi aprovada por sua equipe.
— Nosso parecer era que a molécula tinha potencial, mas os estudos não estavam completos — diz Gil, pesquisador do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino.
Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), não há qualquer pedido de avaliação para registro desta substância nem pedido de pesquisa clínica. “Isto significa que não há nenhuma avaliação de segurança e eficácia do produto realizada com o rigor necessário para a sua validação como medicamento”, diz a agência. Em nota, o Conselho Federal de Medicina (CFM) informou que “a Comissão de Elaboração de Novos Procedimentos Médicos do CFM não analisou nenhum pedido de aprovação do uso da substância fosfoetanolamina para o tratamento do câncer”.
Mesmo assim, o produto vinha sendo entregue de graça por funcionários da USP até que uma portaria do Instituto de Química restringiu a distribuição. E por isso chegou à esfera judicial. Agora, a universidade investiga o envolvimento de professores ou funcionários que teriam divulgado a promessa de cura e estuda a possibilidade de denunciar, ao Ministério Público, profissionais que “estão se beneficiando do desespero e da fragilidade das famílias”.
'TIRO NO PÉ'
O médico e pesquisador Renato Meneguelo, que estudou a fosfoetanolamina sintética na USP, revolta-se com a posição da unidade.
— Quer dizer que a USP dá um tiro no pé? A gente fez um trabalho, defendeu em bancadas, e agora não tem comprovação? Publiquei a primeira tese que fala do composto em tumores e melanoma em 2007. Há sete trabalhos indexados em revistas internacionais dizendo que a fosfoetanolamina funciona em tumores como leucemia — explica.
Na mesma nota, a USP informa que a substância não foi estudada como remédio para curar vários tipos de cânceres. “Ele não foi estudado para esse fim e não são conhecidas as consequências de seu uso”.
Quando a corretora Zenilda Boniatti, de 52 anos, descobriu um tumor no osso, em 2013, tomou dois comprimidos por dia, durante 15 dias. Depois, fez uma cirurgia.
— O médico disse que o tumor estava mais mole — conta ela, que seguiu tomando os comprimidos por oito meses. Hoje, se diz curada. — Não tive medo de tomar. Quando você descobre que está com câncer, só quer uma chance a mais de viver.
16/10/2015 - Fonte: Portal O Globo