Médicos defendem mais espaço para o ensino de cuidados paliativos, para atender pacientes sem perspectiva de cura
A afirmação é óbvia: todos vamos morrer. Com o envelhecimento da população, cada vez mais teremos de aprender a conviver com doenças crônicas. A noção de cuidados paliativos propõe-se a ser benéfica dentro dessa tendência, mas não se limita a ela.
Ainda incipiente no Brasil, trata-se de uma área da assistência à saúde que oferece atendimento multidisciplinar a pacientes com doenças potencialmente mortais e seus familiares.
Essa vertente chama sua unidade de atendimento de hospice, ou hospedaria. O termo é inspirado nas hospedarias que tratavam peregrinos durante as cruzadas medievais. O movimento do hospice moderno se fortaleceu na Inglaterra, na década de 1960.
"Os médicos se preparam para tratar doenças e não pessoas. Aqui, olhamos o paciente como parte de um núcleo familiar e afetivo", diz Ana Claudia Arantes, geriatra coordenadora do hospice do Hospital das Clínicas.
Fundado em 2011, são dez leitos subsidiados pelo SUS, dentro do hospital privado Recanto São Camilo. Os pacientes têm de 16 a 99 anos, 70% deles com câncer. Ela estima haver, no máximo, dez hospices no país –não há um número oficial sobre instituições ativas. "As pessoas estão começando a tomar consciência de que vale a pena viver até o último dia", diz.
Para Arantes, um dos principais desafios é quebrar a noção de que optar por cuidados paliativos significa desistir do paciente. "Não se trata de suspender tratamentos, mas de ampliar o cuidado para uma pessoa que está em extremo sofrimento", diz.
Dalva Matsumoto, oncologista coordenadora da hospedaria do Hospital do Servidor Público Municipal, ressalta que, em cuidados paliativos, a oferta de tratamentos é proporcional às necessidades do paciente. "Mas é difícil, porque a medicina é levada a acreditar que mais é melhor." Ela menciona que a oferta de procedimentos em excesso pode levar ao sofrimento e à distanásia –o prolongamento da vida a qualquer custo.
Maria Goretti Maciel, médica fundadora da enfermaria de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual e presidente da ANCP (Academia Nacional de Cuidados Paliativos), critica a lógica pela qual serviços de saúde e profissionais são remunerados por procedimentos realizados. "O que realmente importa é a dedicação do profissional ao paciente".
Matsumoto exemplifica: "A perda da vontade de comer é um dos sinais da morte. A prática mais comum é inserir uma sonda de alimentação no nariz. Como é desconfortável, o paciente tenta tirá-la e acaba amarrado à cama. A questão não é nunca passar a sonda, mas avaliar o custo-benefício".
O uso de morfina é outro preconceito a ser quebrado, diz Arantes. "O país que mais prescreve morfina é a Áustria –100 mg per capita por ano. A média mundial é de 6,5 mg, e no Brasil, 1,5 mg. É dito que ela causa depressão respiratória e vicia. Estudos indicam que o risco de vício é menor que 0,01%. No Brasil, as pessoas morrem mal e urrando de dor."
O tempo que os pacientes passam nas unidades varia de dias a anos. Gilberta Fátima dos Santos, 56, mora na hospedaria o Hospital do Servidor Público Municipal há quase dois anos. Acamada devido a um tumor na coluna, sente falta de morar com a família, mas entende não haver infraestrutura na casa dos filhos.
"O tratamento aqui tem algo bom: as pessoas quando morrem vão bem. Não precisam ser intubadas, ninguém vai gritando, passando mal."
Os médicos lamentam apenas que a área de cuidados paliativos não seja considerada uma especialização médica. Matsumoto diz que isso facilitaria a cobertura por planos de saúde, a formação de programas de residência médica e de políticas públicas de remuneração dos profissionais.
Ela comenta ainda que a falta de regulamentação facilita a abertura de clínicas particulares que agem em nome de cuidados paliativos, mas não o praticam corretamente.
Fonte: Folha de S.Paulo - 15/09/2015
CAMILA APPEL COLABORAÇÃO PARA A FOLHA