De momentos de silêncio profundo e frases desconexas para aqueles de lucidez surpreendente: “sei que há um passado e sei que vivi” é uma das deixas do poeta Edwin Honig, diagnosticado com o mal de Alzheimer e personagem do documentário “Primo de segundo grau”, exibido no festival “É tudo verdade”. Vêm ganhando destaque as produções cinematográficas sobre a doença à medida que esta, com o aumento de casos, se torna uma rotineira batalha para as famílias em todo o mundo. E se para quem presencia a progressão dos sintomas há tantas perguntas, não é diferente para a ciência. Mas, agora, uma nova resposta vem de pesquisadores brasileiros, que descobriram uma molécula que poderia ser usada no diagnóstico precoce da doença.
O estudo é da UFRJ e foi publicado nesta terça-feira na “Translational Psychiatry”, que faz parte da revista “Nature”, uma das mais reconhecidas do ambiente científico. Nele, os pesquisadores mostram que os níveis elevados do aminoácido chamado D-serina — responsável pela sinalização das sinapses, pontos de conexão entre os neurônios — estão associados ao declínio cognitivo no Alzheimer.
Na primeira etapa das pesquisas, o grupo analisou cérebros de indivíduos que morreram com o mal e comparou com os de outros sem a doença. Com isso, os cientistas notaram que a D-serina era muito elevada no hipocampo e no córtex, regiões cerebrais afetadas pelo Alzheimer. E que também estava acima da média no líquor (líquido presente entre o cérebro e o crânio) dos doentes. Depois, buscaram o mecanismo para esse processo: e mostraram, em camundongos, que o aumento da D-serina pode ser causado pelo acúmulo dos oligômeros do peptídeo beta-amiloide, toxinas que se acumulam no cérebro do doente.
TESTES REALIZADOS EM HUMANOS
Por fim, os pesquisadores fizeram testes em cerca de 50 indivíduos e comprovaram que o nível de D-serina no líquor era claramente superior nos doentes ou nos que tinham maiores chances de desenvolver a doença. Além disso, quanto maior o nível da molécula, pior o declínio cognitivo.
— A D-serina vai aumentando à medida que a doença progride — explicou o médico neurocientista Rogério Panizzutti, autor principal do estudo e diretor do Laboratório de Fronteiras em Neurociências da UFRJ. — O exame do líquor hoje é invasivo, mas já é usado em outros casos, como na meningite. Acreditamos que esta poderia ser uma ferramenta também para o Alzheimer.
O grupo de pesquisa começou a fazer testes num número maior de pacientes para comprovar as descobertas e, inclusive, já pediu a patente ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) do uso da D-serina como biomarcador para o Alzheimer. Num panorama otimista, a expectativa é que em cinco anos eles consigam concluir o estudo e já resolvam questões regulatórias para o uso do método.
— Estamos indo muito bem — garante Panizzutti, explicando que o biomarcador poderia ser usado sozinho ou em conjunto com outras moléculas que vêm sendo estudadas com o mesmo fim.
O Alzheimer é a principal forma de demência — problema que afeta 44 milhões de pessoas no mundo, segundo dados do grupo Alzheimer’s Disease International. No Brasil, são em média 1,2 milhão de pessoas com o mal. Mas apenas uma em cada quatro pessoas são diagnosticadas. Não existem exames para isso, apenas o olhar clínico de profissionais. E, muitas vezes, o diagnóstico é tardio.
Outros grupos de pesquisa no mundo buscam biomarcadores para identificar a doença. Até agora, os estudos não foram colocados em prática. Segundo o neurocientista Stevens Rehen, pesquisador do Instituto D’Or, um dos empecilhos é que os biomarcadores se manifestam em estágios avançados da doença.
— O principal desafio hoje é ter um diagnóstico precoce, porque é o primeiro passo para a busca de um tratamento, e esse estudo faz isso — afirma Rehen, que comemorou a publicação brasileira. — Essa pesquisa tem uma importância imensa, especialmente para o Brasil, que vive com dificuldades de fazer a ciência avançar.
O envelhecimento populacional e o estilo de vida pouco saudável são fatores que têm elevado o número de doentes. Nos EUA, eram 4,7 milhões em 2010, e a estimativa é que subam a 13,8 milhões em 2050. Além disso, o custo mundial com a doença é estimado em US$ 605 milhões. Mas, para além de índices, filmes como “Primo de segundo grau”, do cineasta Alan Berliner, que acompanhou seu primo pelos últimos cinco anos de vida, ou “Para sempre Alice”, estrelado por Julianne Moore no papel da professora que aos poucos perde a memória e a tonicidade do corpo, mostram que a doença é uma das que mais afetam famílias, financeira e emocionalmente.
— Está se tornando um problema grave de saúde pública — acrescenta Rehen.
Fonte: Portal O Globo 06/05/2015