Remédio banido desde 2005 pode ser comprado com ambulantes na Rua Uruguaiana. Valor varia de R$ 250 a R$ 600.
RIO — O mercado negro do aborto chegou às bancas de camelôs da Rua Uruguaiana, no Centro. À luz do dia e diante de agentes da Guarda Municipal, ambulantes oferecem aos gritos: “Cytotec! Cytotec!”. Proibido no Brasil desde 2005, o medicamento era originalmente utilizado para o tratamento de úlceras, mas a sua ação abortiva provocou a suspensão das vendas, e sua comercialização passou a ser considerada crime hediondo, com pena de até 15 anos de prisão, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Apesar disso, desembolsando de R$ 250 a R$ 600, é fácil obter a cartela com quatro comprimidos do abortivo, além de ganhar uma rápida “consulta” com o próprio vendedor sobre como utilizar o produto:
— É preciso tomar dois comprimidos via oral e pôr dois na vagina, em jejum. Depois de algumas horas, a mulher sentirá cólica e começará a sangrar. O feto vai sair junto. É garantido, mas tem que tomar dessa maneira que eu estou falando — orientou o ambulante, que também vende DVDs piratas e chips para celular.
Durante uma hora, uma equipe do GLOBO flagrou cinco camelôs oferecendo Cytotec e Pramil — remédio para disfunção erétil produzido no Paraguai e sem registro na Anvisa — na Uruguaiana, ao lado do camelódromo. Após uma breve negociação e definido o valor a ser pago pelo Cytotec, R$ 250, o ambulante desapareceu em meio aos boxes do camelódromo e retornou minutos depois com quatro comprimidos enrolados num plástico, sem qualquer etiqueta comprovando a origem do medicamento.
ADVOGADA PASSOU MAL COM REMÉDIO
Perguntado sobre a procedência do remédio, ele afirmou que um amigo distribui a mercadoria. O vendedor enfatizou a eficácia do abortivo, ressaltando que há grande procura pelo produto:
— Vendo muito, direto, todos os dias. Esta semana, uma mulher apareceu aqui grávida de seis meses com o dinheiro na mão. Eu não vendi. A recomendação é tomar com até três meses de gravidez, mas acho que ela comprou com outro colega. Eu não quis ficar com esse peso na consciência e ainda avisei: “Se você tomar, a criança vai embora e você vai junto com ela” — contou.
Surpreendida por uma gravidez não planejada, uma advogada de 28 anos, que preferiu não se identificar, viu como única alternativa a automedicação para interromper a gestação de três semanas. Escondida da família e sem dinheiro para se submeter ao procedimento numa clínica clandestina, a advogada e o namorado decidiram comprar o Cytotec:
— Sangrei demais e, depois, precisei fazer uma ultrassonografia para conferir se estava tudo bem. Não faria de novo, por causa do sofrimento por que passei. Foi bem doloroso o processo abortivo. Coloquei a minha vida em risco por causa de uma irresponsabilidade de nós dois.
O medicamento é composto por um princípio ativo chamado misoprostol, substância abortiva que, legalmente, segundo a Anvisa, só pode ser usada em procedimentos hospitalares.
Para a ginecologista Vera Fonseca, membro do Cremerj, em meio ao desespero, as mulheres acabam investindo em métodos rápidos para abortar, porém extremamente perigosos, colocando a própria vida em perigo:
— Há chances de um abortamento incompleto, o que pode ocasionar má-formação fetal, além de hemorragias, ruptura do útero e infecções. Pode causar também a morte dessa gestante.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que, a cada dois dias, uma brasileira morra vítima de aborto ilegal no Brasil. Dados da Secretaria estadual de Saúde do Rio mostram que, em 2014, cerca de 15 mil mulheres foram internadas para a realização de curetagens pós-abortamento, uma média de 41 pessoas por dia. No entanto, como não há diferenciação no atendimento prestado pelo Sistema Único de Saúde, esse número compreende tanto os abortos espontâneos quanto os provocados por métodos ilegais.
POLÍCIA DIZ QUE TEM INVESTIGAÇÃO
A presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher, Marisa Chaves, defende a ideia de que governo e sociedade abram o debate de maneira madura, priorizando a saúde das mulheres:
— Nenhuma mulher vai à Uruguaiana para comprar e consumir um remédio, que agredirá de forma tão brutal o seu organismo, se não estiver numa situação de desamparo e desespero. As mulheres têm direito ao acesso a políticas públicas que deem a elas o poder de escolher os melhores métodos contraceptivos. É preciso escutar as angústias e orientar, não punir — salientou Marisa.
A Anvisa informou que trabalha para impedir a entrada de fármacos ilegais no mercado brasileiro, com o apoio dos órgãos estaduais de vigilância sanitária e de segurança. Já a Polícia Civil disse que há um inquérito em andamento para apurar a venda do Cytotec pela internet.
A Guarda Municipal, por sua vez, esclareceu que atua na Rua Uruguaiana no combate a barracas de ambulantes que estejam obstruindo a via pública. Segundo o órgão, a venda de medicamentos ilegais não costuma usar qualquer estrutura física e, geralmente, as pessoas que anunciam a mercadoria não estão com os produtos em mãos, tratando-se, portanto, de atividade criminal que exige investigação. Procurada, a Polícia Civil orientou o repórter a entregar o medicamento comprado numa delegacia.
Fonte: O Globo – Rio de Janeiro
POR PAULO ROBERTO JUNIOR